quinta-feira, 12 de dezembro de 2013

8ª Mostra Cinema e Direitos Humanos na América do Sul


A 8ª edição da Mostra Cinema e Direitos Humanos na América do Sul, realizada pela Secretaria de Direitos Humanos em parceria com o Ministério da Cultura, vem exibindo 38 filmes pelo território nacional, entre os dias 26 de novembro e 22 de dezembro. O Cineclube LECgeo foi contemplado pela mostra e um dos filmes selecionados para exibição será Doméstica, de Gabriel Mascaro. Um documentário que apresenta, através das perspectivas de jovens filhos de patrões, o cotidiano de empregadas domésticas durante uma semana. A exibição será dia 17 de dezembro, no auditório Manuel Correia de Andrade, 3º andar do CFCH - UFPE, 18:30. 




O outro filme é Kátia, de Karla Holanda, que conta a história de Kátia Tapety, a primeira travesti eleita a um cargo político no Brasil. Este será exibido no dia 18 de dezembro, no Auditório Profº Jerônimo Lemos, 5º andar do CFCH - UFPE, a partir das 18:30 também. A entrada para as exibições é gratuita e após cada filme será realizado um debate. Venham participar!





sábado, 3 de agosto de 2013

Cineclube LECgeo: Filme-debate "Metamorfoses Paisagísticas"

       Prezados, é com grande prazer que a equipe do Cineclube LECgeo convida a todos para mais um filme-debate desenvolvido na UFPE. Desta vez, a sessão apresenta como tema "Metamorfoses Paisagísticas", onde serão exibido dois filmes distintos, mas com um tema que os une: as transformações nas paisagens advindas do processo de urbanização.
       Os filmes que serão debatidos correspondem a produção "Metamorfoses da Paisagem", dirigido por Eric Rohmer no ano de 1964, e o curta-metragem "Dique", dirigido por Adalberto Oliveira e lançado em 2012. Na sequência da exibição dos filmes, teremos uma conversa posterior com o diretor Adalberto Oliveira. Segue abaixo as informações detalhadas da exibição.

Tema da sessão: “Metamorfoses paisagísticas”

Metamorfoses da Paisagem
França, 1964, 22'
Direção: Eric Rohmer
Sinopse: Neste importante curta-metragem, o diretor Eric Rohmer levanta questões complexas sobre os significados existentes nas paisagens modernas e suas enigmáticas características funcionais, tais como os canais, as torres e fábricas desertas.

Dique
Recife, 2012, 18'
Direção: Adalberto Oliveira
Sinopse: Curta metragem pernambucano realizado como projeto de conclusão do Curso de Comunicação Social, mostra que onde antes era um cenário paradisíaco, surge uma nova paisagem sonora proporcionada pela urbanização desordenada e caótica de uma cidade dormitório. 
Maiores informações: http://diquefilme.blogspot.com.br/

Dados da sessão: 
Dia: 14/08/2013 
Local: Auditório Manuel Correia de Andrade, 3º andar do CFCH 
Horário: 18hs



terça-feira, 20 de setembro de 2011

Considerações Filme-debate "Quando a maré encher"

As cidades são como caixas de Pandoras, tal como já caracterizou Bauman[1]. Aglomerados complexos, heterogêneos, em constantes metamorfoses, compreender as dinâmicas destes espaços requer que escapemos de concepções pré-estabelecidas, das imagens do senso comum, desenvolvendo um “olhar morfológico”, um olhar que procura observar o visível, registrar todos os detalhes, questionar, confirmar e apontar novos fatos, objetos e sentidos da paisagem (SAUER, 2000).
Depreende-se assim, que um debate sobre a cidade do Recife, cidade plural em paisagens e identidades, deve prescindir da consideração desta variabilidade da cena urbana. Cidade difícil de se compreender num primeiro momento, o Recife exige grande esforço na compreensão de sua dinâmica.
O filme-debate desenvolvido a partir da exibição do documentário "Quando a maré encher" (2006, 31’) do diretor Oscar Malta demonstrou a complexidade da cidade do Recife, na medida que demonstrou o cotidiano social dos pescadores urbanos da cidade, mostrando a criatividade necessária de quem depende da relação com o mar, dos pescadores que navegam à procura do seu sustento, dos que sabem ter a paciência para, a cada manhã, ter seu dia definido pela maré.
Algumas temas balizaram o debate, como a influência da maré na vida das pessoas, onde as forças da natureza são encaradas quase como uma divindade, uma miotologia, que decide a vida da população mas também fornece o sustento de vida aos habitantes da Ilha de Deus. Esta relação bastante íntima entre os espaços líquidos observados e seus habitantes, acabou por evidenciar a “identidade da maré” que esses moradores da Ilha de Deus apresentam. A partir da prática da pesca, passada como uma atividade de família através das gerações, alguns personagens do filme tornam evidente como a relação entre estes espaços e seus habitantes é permeiada por laços identitários, transparecendo-se, por exemplo, na fala de Garotinho, habitante da comunidade, e que arremata em depoimento que “a realidade da comunidade é o sururu, o caranguejo”.
Esta percepção acerca da “identidade da maré” indicou alguns apontamentos que aproximaram o debate acerca das representações retóricas sobre a relação estabelecida entre a cidade do Recife e os indíviduos das classes abastadas, habitantes dos ambientes mais frágeis do espaço urbano da capital pernambucana, os manguezais. A saber, os discursos acerca dos “homens caranguejos” de Josué de Castro, do “homem-gabirú”, de Daniel Aamot e os “Caranguejos com cérebro”, do movimento musical Mangue Beat.
Em comum, estas representações da cidade, assim como o filme de Oscar Malta revelam as estreitas relações e a criação de identidades que se desenvolvem entre os recifenses e as águas da cidade, mas revelam igualmente, uma visão crítica a específicas questões sociais do Recife, possibilitando um debate acerca das desigualdades sociais da cidade do Recife, assim como a insustentabilidade e precarização a que alguns indivíduos sobrevivem na metrópole pernambucana.
Podemos assim pensar, a partir desta relação sociedade-mangues, que estes espaços pantanosos adquirem duas idéias nos imaginários urbanos da cidade: a existência daquele mangue diabólico, que engole a vida das pessoas, habitado por mares de miséria, por habitantes que em tudo mimetizam os caranguejos, entregues ao poder maligno da maresia; a percepção de um mangue divino, que a tudo criou na cidade do Recife.
O vídeo também mostra o drama ecológico dos rios da capital pernambucana, entregue a uma sucessiva carga de aterros, de poluição fluvial e canalizações crescente, de destruição das zonas de mangues, assim como a agressões mais recentes de cunho especulativo, onde observa-se uma crescente expansão mobiliária via Le Parc, Shopping Rio-Mar, as Torres Gêmeas da Moura Dubeaux, a Via Mangue…
Este crescente processo de gentrificação observada nas margens dos rios da cidade, revelam uma densa dinâmica que tem se observado no Recife: a exiguidade do terreno da cidade, somada à revalorização paisagística dos ambientes líquidos da “cidade estuário”, assim como a associação entre o poder público com o privado tem evidenciado como a renovação urbana da cidade tem sido calcada pela valorização dos usos econômicos dos espaços urbano da cidade, seja estes usos pela verticalização das margens risonhas do Capibaribe pelas grandes empresas de engenharia, seja pelo estímulo ao comércio paisagístico de um Recife apropriado pelos discursos do city marketing.
No mais, pensando que este debate não acaba com o fim da sessão, sugerimos abaixo, alguns textos que podem introduzir novas questões sobre as problemáticas urbanas observadas nesta segunda sessão do cineclube LECgeo. Desde já agradecemos a todos presentes que contribuiram com este rico debate.

SUGESTÕES BIBLIOGRÁFICAS
AAMOT, Daniel et al. Homem Gabiru: Catalogação de uma espécie. 1º edição, São Paulo: Hucitec, 1992.
BITOUN, Jan. Centro Histórico e Identidade Territorial. In: SARINHO, B.; BORGES, W. (Orgs.). Memória do Seminário Recife, Cidadania e Revitalização. Recife: Inojosa Editores, 1993, p. 49-58.
___________. Recife, uma interpretação geográfica. In: CARLOS, A.F.A. (Org.). Os Caminhos da Reflexão sobre a Cidade e o Urbano. São Paulo: EdUSP, 1994, p. 27-45.
___________. Territórios do diálogo: Palavras da cidade e desafios da gestão participativa no Recife (Brasil). Revista de Geografia. Recife: UFPE/DCG, v. 16, n. 2, jul/dez, 2000, p. 41-54.
____________. Impactos Socioambientais e Desigualdade Social: vivências diferenciadas frente à mediocridade das condições de infra-estrutura da cidade brasileira: o exemplo do Recife. In: MENDONÇA, Francisco (org.). Impactos Socioambientais Urbanos. Curitiba: Ed. Da UFPR, 2004, p. 255-269.
CASTRO, Josué de. Ensaios de Geografia Humana. 4º ed. São Paulo: Brasiliense, 1966, p. 153-226.
______________. Homens e Caranguejos. 4º ed. Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 2010.
MACIEL, Caio Augusto Amorim. Espaços Públicos e Geo-símbolismos na “Cidade-estuário”. In: Revista de Geografia da UFPE. Recife: UFPE/DCG-NAPA, vol.22, nº1, JAN/JUL, 2005, p. 10-18.
MORAES, Demóstenes; MIRANDA, Lívia. “O Direito a Cidade e a Regula(riza)cão de Assentamentos Precários no Recife”. In: Cadernos Observatório PE – Políticas Públicas e Gestão Local na Região Metropolitana do Recife. Recife: 2007, p. 74- 81.
NETA, Maria Amélia Vilanova. Geografia e Literatura: decifrando a paisagem dos mocambos do Recife. Dissertação de Mestrado em Geografia. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2005.
RECIFE, Prefeitura. Atlas do Desenvolvimento Humano no Recife. 2005. Disponível em: <http://www.recife.pe.gov.br/pr/secplanejamento/pnud2006/downloads.html>.



[1] BAUMAN, Zygmunt. Confiança e medo na cidade. Rio de Janeiro: Editora Zahar, 2009.

quarta-feira, 7 de setembro de 2011

Exibições - Setembro

PróximasTemos o prazer de convidar a todos para prestigiar as próximas exibições do CineClube LECgeo.

15/09/2011 - Filme-debate "Quando a maré encher"
Diretor: Oscar Malta
31 minutos, 2006
Debatedores: Danuza Moraes e David Tavares (Membros do LECgeo com trabalhos sobre as paisagens recifenses). 
Local e horário: Auditório do 5º andar, as 14:00

Sinopse: O filme registra o cotidiano social dos pescadores urbanos do Recife, mostrando a criatividade necessária de quem depende da relação com o mar, dos pescadores que navegam à procura do seu sustento, dos que sabem ter a paciência para, a cada manhã, ter seu dia definido pela maré. O vídeo também mostra o drama ecológico dos rios que não pulsam mais como antes.
 


27/09/2011 - Filme-debate "Nas terras do bem-virá"
Direção de Alexandre Rampazzo e Tatiana Polastri
110 minutos, 2007
Debatedores: Leslie Tavares (ecólogo e superintendente técnico da Superintendência de Meio Ambiente e Sustentabilidade-PE) e Fabiano Bringel (pós-graduando em Geografia UFPE). 
Local e horário: auditório Manuel Correia de Andrade, 3º andar, as 14:00.

Sinopse: O filme narra o percurso histórico de um modelo de desenvolvimento criado nos anos 70, no auge da ditadura militar. A partir da ênfase em grandes projetos e estradas atravessando a Amazônia, ocorre uma aceleração do processo de migração. Como consequência surgem conflitos armados, devastação da floresta, casos de trabalho escravo, luta pela terra e assassinatos, como o dos sem-terra de Eldorado dos Carajás e da missionária americana Dorothy Stang.

As exibições fazem parte das atividades do Cineclube Lecgeo, que apresenta como proposta articular debates entre os pesquisadores do grupo, alunos da graduação, pós-graduação e demais interessados nas linhas de pesquisa do laboratório, promovendo a divulgação de filmes e documentários que reflitam as áreas de estudos e atuação do grupo.

Contamos com a presença de todos

domingo, 4 de setembro de 2011

ALGUMAS GEOGRAFIAS QUE O CINEMA CRIA

Para não interromper o dabate iniciado na primeira exibição, segue abaixo como sugestão de leitura o texto "ALUSÕES, LUGARES E ESPAÇOS NO FILME CIDADE DE DEUS: algumas geografias que o cinema cria" do Prof. Dr. Wenceslao Machado de Oliveira Jr, originalmente publicado no blog "Cenários da Vida Pública", página da internet do grupo "Território e Cidadania", grupo de pesquisa vinculado ao Departamento de Geografia da UFRJ, orientado pelo professor Paulo Cesar da Costa Gomes, privilegiando o estudo dos conceitos de espaço público, de cenário e de imagem urbana.

Boa leitura! 


ALUSÕES, LUGARES E ESPAÇOS NO FILME CIDADE DE DEUS
algumas geografias que o cinema cria

Prof. Dr. Wenceslao Machado de Oliveira Jr
Pesquisador no Laboratório de Estudos Audiovisuais-OLHO
Professor no Departamento Educação, Conhecimento, Linguagem e Arte 
Faculdade de Educação/Unicamp 
wences@unicamp.br



“A sabedoria última da imagem é dizer:
‘isto é uma superfície’.
Agora pense.
Ou melhor, sinta, intua.
O que está além disso?
Como deve ser a realidade?
Se parece com esta imagem?”
Susan Sontag

As imagens e sons que nos chegam dos filmes cinematográficos propõem “ações” no mundo, nos propõem práticas espaciais a sentir e a realizar. O mundo – aqui tomado, na acepção arentdtiana, como morada dos homens na terra – está como que tatuado no corpo daquele que produz cinema e geografia e educação, nos seus mais diversos mapeamentos. Sendo eu, graduado em Geografia, professor na área de formação de professores e pesquisador em linguagem audiovisual, tenho buscado escrever acerca das interfaces que venho encontrando nesses percursos cruzados pelas práticas sociais existentes em cada um desses “universos de cultura”.
É na solidariedade, conflito ou tensão entre as diversas práticas sociais com as quais convivemos que temos nossos “territórios interiores” formados e informados, à semelhança e continuidade com que se configuram os “territórios exteriores”. No cinema, esse “interior subjetivo” e o “exterior material” são mais nitidamente misturados e misturáveis, sendo eles, no mais das vezes, indistintos, o que me leva a crer que a contaminação entre eles é mais direta. Essa é a permeabilidade que existe de maneira intensa entre as imagens e sons fílmicos e as práticas espaciais contemporâneas.
Pier Paolo Pasolini propõe que há uma linguagem pedagógica das coisas (1990) e que o cinema, sendo a língua escrita da realidade, nos dá consciência das coisas que compõem a realidade (1982) e da pedagogia nelas existente. Sob esta perspectiva pasoliniana podemos dizer que “os fundos de cena estariam a nos dizer dos lugares, a circulação dos personagens pelos espaços fílmicos estariam a nos lançar luzes sobre os entendimentos da circulação das pessoas no espaço geográfico para além filme. Isso porque, se a linguagem do cinema se constrói com “pedaços da realidade” (que apesar de serem pedaços, conservam em seu interior as tensões, impurezas e memórias dessa realidade), suas “palavras e frases” seriam os “quadros” que vemos diante de nós, que nos apresentam o mundo em ângulos, cores, focos, enquadramentos... tudo a nos apresentar inevitavelmente algum espaço” (Oliveira Jr, 2004).

GEOGRAFIA FÍLMICA: CIDADE CINEMÁTICA E CAMADAS DE REALIDADE

É devido a essas minhas extrapolações das proposições pasolinianas na direção do entendimento do espaço fílmico, que devo dizer que minha mobilização nesse texto é a de encontrar e apontar outras geografias existentes nos filmes. Algumas perguntas me guiam: como seria o espaço dos filmes? como ele é configurado? quais interfaces mantêm com a realidade espacial além cinema? Faço minhas as palavras de Maria Helena Braga e Vaz da Costa, em seu artigo Espaço, tempo e a cidade cinemática: 
“Espaço, nesse caso, adquire uma significação através dos diferentes movimentos. A cidade cinemática é construída, adquire um significado e, como uma criação cultural, influencia a realidade, no momento em que é um produto dessa mesma realidade. No final, a cidade na tela não é apenas o reflexo da realidade”. (2002, p.72)
Em um parágrafo anterior de seu texto, a autora citada acima escreve acerca da cidade cinemática:
“É uma cidade criada por imagens ‘escolhidas’ previamente e que, juntas, não apenas se tornam uma cidade única, mas também são capazes de dizer muito sobre a cidade original. Como a cidade cinemática é, de certa maneira, produto da imaginação, trabalha como uma ‘ponte’ para o entendimento do espaço e do lugar em que vivemos.” (idem, p.72)
Mesmo porque, nas palavras da mesma autora, “a cidade concreta, então, só se torna ‘real’ quando é representada, quando é apresentada através de diferentes interpretações e leituras” (ibidem, p.73).
A partir dessas proposições, me deterei neste ensaio mais alongadamente nas maneiras alusivas com que o espaço fílmico é criado e apresentado aos espectadores, realizando assim uma interpretação dos espaços e lugares que são criados no filme em alusão aos espaços e lugares além filme.
Tomarei o filme Cidade de Deus para realizar esse exercício interpretativo, uma vez que esse é um filme cujo espaço fílmico onde se passa a narrativa já se inicia com muitas imagens e memórias para nós que somos brasileiros. Cidade de Deus é um nome preenchido por um lugar geográfico, situado na cidade do Rio de Janeiro. Ao longo das últimas décadas do século XX este lugar foi preenchido por muitas notícias, histórias e imagens de violência, tráfico de drogas e miséria.
Por esta razão, muitas imagens vistas e ouvidas na tevê, nos jornais, nos livros, configuram esse espaço fílmico antes mesmo do filme começar. Essas imagens entram e sentam conosco diante da tela . Essas imagens com as quais adentramos a sala de cinema para ver Cidade de Deus nos chegam da memória, esse “lugar que não obedece”, no qual não penetramos do jeito que queremos e que nos envia, nos atira , imagens e imagens, onde a realidade persiste e se desfaz. 
Cidade de Deus é um filme que é, antes de tudo, um lugar, um espaço. Antes de ser local fílmico já era lugar geográfico, imaginário, literário . 
Ao iniciar o filme o lugar já existia em nossas memórias e são elas que estarão conosco durante a projeção. Lembremos os escritos de Milton José de Almeida quando diz da participação das memórias nos filmes. Na página 38, do livro Cinema: arte da memória lê-se: 
“A compreensão de um filme (...) acontece nesse intervalo entre as cenas e é histórica, social e individual, particular, ao mesmo tempo” 
e mais à frente, na página 41: 
“Tudo o que envolve o movimento psicológico do intervalo, trazido, inicialmente, pela visão da imagem e que não estão visíveis nela, segue percursos mentais da imaginação, transitam desgovernadamente pela racionalidade, pela linguagem, pelos sentimentos, pelo devaneio, pelo sonho... e, principalmente, pela memória”.
Para este autor as memórias pessoais participam do entendimento fílmico justamente devido à existência dos cortes, dos intervalos entre uma cena e outra. O vazio imagético estabelecido pelos cortes é penetrado pelas imagens presentes em nossas memórias, fazendo com que o entendimento fílmico seja ao mesmo tempo coletivo – devido às imagens e sons vistos e ouvidos por todos de maneira semelhante – e pessoal – devido às imagens e sons de nossas memórias que preenchem os vazios dos cortes e nos dão perspectivas diferentes das ações e existências dos personagens e cenários. 
Nos filmes cujo local fílmico – narrativo – é um lugar geográfico de nosso conhecimento, antes mesmo de vermos a primeira cena do filme já atualizamos nossas memórias acerca daquele lugar.
Desta forma, ao iniciar do filme Cidade de Deus já temos muitas imagens com as quais preencher os vazios – nunca vazios – dos cortes ou intervalos... Sobre essas memórias já existentes em nós que são solicitadas para o “entendimento fílmico” escrevi em outro ensaio: 
“O diretor do filme “ganha tempo” com isso, pois já ao iniciar nos coloca no “clima” narrativo desejado pela trama, constituído pela loca(liza)ção da cena nesse cenário/lugar. Ao fazê-lo, no entanto, passa também a correr riscos, pois a verossimilhança com lugares já conhecidos cria um “campo de possibilidades” vinculado mais fortemente aos saberes e memórias já existentes nos espectadores. Quanto mais restrito e “localizável” é o lugar onde a trama se passa – cidade do Rio de Janeiro é menos restrito que favela Cidade de Deus – mais esse “campo” se diferencia entre os espectadores: para aqueles que o conhecem mais de perto e para aqueles que o desconhecem. Para os primeiros, suga as memórias de maneira mais radical, enquanto que para os demais, solicita analogias com lugares semelhantes já conhecidos, mas mantém uma abertura maior para o estranhamento, uma vez que estão “diante daquele lugar” pela primeira vez. Entre esses dois tipos de espectadores estamos quase todos nós...” (Oliveira Jr, 2004, p.4)

O que pretendo desenvolver neste ensaio diz respeito à tênue linha que persiste nas conversas sobre os filmes produzidos pelo cinema. Falo da linha da realidade. Digo isso porque, sendo eu um seguidor das propostas pasolinianas de entendimento do cinema como língua escrita da realidade, acredito que sempre e inevitavelmente as imagens e sons fílmicos nos trarão as imagens e sons da realidade além cinema para dentro das imagens e sons vistos e ouvidos na tela.

Primeiro parêntese
É por isso que assistir filmes e conversar sobre eles têm muita relação com aquilo que Walter Benjamin chamou de experiência, no ensaio Alguns temas sobre Baudelaire. Pesquisar filmes torna essa relação algo a ser perseguido, aproximado, reparado. De que maneira minhas experiências têm sido sugadas pelas imagens do cinema? De que maneira elas têm sido as próprias imagens de cinema? 
Para continuar com Benjamin, poderíamos utilizar para as imagens do cinema a mesma distinção que ele usa para o mundo da vida humana – urbana – de além cinema: experiências para as imagens que nos ficam, que permanecem a reverberar em nós – poesia – e vivências para aquelas que apenas passam, são vistas, mas foram imagens fugidias por não se colarem a nós. 

Retornando...
É bom lembrar que Pasolini toma a realidade como linguagem. E ela é uma linguagem bruta, autoritária, direta. No ensaio Genariello: a linguagem pedagógica das coisas ele expõe que as imagens da – primeira – realidade inclusive nos tomam desarmados e se fixam em nós para sempre, a nos informar do mundo a que representam: uma vez que a cortina pesada e branca é associada por nós ao universo pequeno burguês, todas as vezes que nos depararmos com uma cortina pesada e branca seremos lançados nesse universo. 
Como para Pasolini o cinema é a língua escrita da realidade, fica sobressaltado o papel eminentemente político do cinema, uma vez que este, ao constituir suas narrativas com esses “pedaços de realidade”, nos dá consciência dela, armando-nos o olhar, indicando-nos as artimanhas e pedagogias existentes na realidade. 
Penso que, após tantos anos de convivência com o cinema, somos atualmente pessoas que temos o olho armado – mas também desarmado – pelas imagens e sons do cinema. 
Na tradição hegemônica de imagens [a americana e seus corolários – o filme Cidade de Deus, por exemplo] faz-se um enorme esforço para que esses “pedaços da realidade” apareçam diante dos espectadores com seus significados já postos e seus sentidos em estabilidade nas proximidades daquilo que chamamos realidade. 
Esses sentidos devem estar contidos pelo próprio fluxo da narrativa – onde a trilha sonora tem papel fundamental – e pela agilidade dos quadros e efeitos visuais. Nas tradições cinematográficas em que o fluxo das imagens é mais lento, a realidade se manifesta em sua maior inteireza, os significados e sentidos circulam com mais constância e insistência pelas imaginações e corpos dos espectadores, indo e vindo da narrativa que assistimos, mas nunca permanecendo exclusivamente nela. Esta classificação me foi inspirada pelo artigo Extracampo e eleições afetivas de Ronald F. Monteiro, o qual aponta os filmes americanos como exemplos de filmes que exercem sobre o espectador uma força centrípeta, sugando-nos para seu interior cada vez mais e os filmes europeus como exemplos de filmes onde há também uma força centrífuga que nos retira do filme em direção a nós mesmos.

Mas afinal, o que é mesmo a realidade? Pasolini a tomava como aquilo que vemos e ouvimos e significamos nesse processo ininterrupto de viver em meio às coisas e pessoas. Ela seria principalmente algo que está no mundo das coisas materiais, físicas. Uma realidade francamente visível e captável pelas câmeras cinematográficas. Mas ele sabia que a vida era algo bem maior que a realidade, e o que havia em seus filmes era a vida, apresentada com pedaços da realidade.
Creio que essa perspectiva interpretativa do que seria a realidade é radicalizada por Gianni Vattimo e seus seguidores. Tomemos um deles, Jorge Larrosa, no ensaio Agamenon e seu porqueiro - notas sobre a produção, a dissolução e o uso da realidade nos aparatos pedagógicos e nos meios de comunicação. Para este autor espanhol a realidade pode ser entendida de outra forma, ou melhor, ela não seria algo já dado, mas seria aquilo que está em discussão num determinado grupo ou sociedade, podendo dessa forma ser construída e dissolvida, a todo momento, pelos discursos e práticas sociais que acontecem. O cinema é certamente uma dessas práticas e discursos sociais mais potentes contemporaneamente para atuar nesse processo de construção e dissolução da realidade.
Partindo desta compreensão da realidade, o filme Cidade de Deus participa, com suas imagens e sons, da construção mesma da realidade desse lugar geográfico Cidade de Deus, dissolvendo, no processo de sugar nossas memórias para dentro do filme, realidades anteriores que existiam/circulavam acerca desse lugar. Nossas práticas espaciais e nossas falas sobre esse lugar passam a acontecer tomando as imagens do filme como um de seus parâmetros, talvez o mais importante, não só por decisões conscientes, mas também por medos e receios que jogaram suas raízes bem fundo em nós a partir das imagens do filme, que já nos chegam carregadas de sentidos. 
Isso amplia a importância política dos filmes e suas imagens que se colam muito diretamente num real pré-existente, apoiando-se nele para o desenvolvimento da narrativa, contaminando-o com outros sentidos para seus pedaços trazidos à tela. Em outras palavras, os lugares geográficos passam a ser construídos e dissolvidos através e a partir dos locais fílmicos que aludem direta ou indiretamente aos primeiros.
No entanto, é importante dizer que não é tão simples assim construir a idéia de realidade num filme, principalmente quando a realidade pretendida deve ser colada à realidade criada pelas experiências e pelas ciências. Faz-se um enorme esforço para que esses “pedaços da realidade” apareçam diante dos espectadores com seus significados “de coisas em si mesmas”, bem como com seus sentidos em estabilidade nas proximidades daquilo que chamamos realidade. 
Neste artigo, busco salientar como as alusões criam muito deste efeito de realidade em nós, espectadores.




TRAZENDO A REALIDADE PARA O FILME: ALUSÕES E CONTINUIDADES

A cada alusão feita pelo filme ao lugar além-cinema, a realidade deste lugar geográfico além-cinema é colocada em questão. Entram em circulação outros sentidos e significados que vão compor mais e mais camadas de realidade: sedimentos memoráveis que serão mais ou menos acionados todas as vezes que ouvirmos a expressão que nomeia esse lugar geográfico: Cidade de Deus.
Nesse filme as alusões são muitas, diversas e constantes. 
Iniciam-se no próprio título: Cidade de Deus. Este é um bairro da Zona Norte do Rio de Janeiro, cuja origem se deve à presença maciça nesta cidade de habitantes em condições de extrema fragilidade social. Criado para abrigar famílias que para lá foram transferidas por não terem outra opção de moradia, após terem sido desabrigadas pelas chuvas ou por reformas urbanas. 
Desde seus primórdios, o bairro Cidade de Deus foi um bairro pobre e periférico, mas não necessariamente um bairro violento ou mesmo uma região favelada. Tornou-se cada vez mais pobre a despeito das melhorias urbanas conquistadas a duras penas pelo movimento social organizado por seus moradores. 
Foi na esteira da manutenção e recrudescimento das desigualdades sociais brasileiras que este bairro carioca tornou-se sede de organizações criminosas ligadas ao tráfico de drogas. Um bairro que, a partir de então, esteve presente com freqüência na mídia brasileira como local onde ocorreu alguma violência especial, alguma ação policial específica vinculada ao tráfico de drogas. Era, antes mesmo do filme ir às telas, um lugar já existente na memória dos brasileiros de maneira geral e dos moradores do Rio de Janeiro de maneira particular. 
Além disso, ao virar best-seller, o livro de Paulo Lins, Cidade de Deus, trouxe novamente esse bairro para as mídias, ratificando sentidos e imagens sobre a violência, o tráfico, a pobreza, a polícia, mas também colocando em circulação outros sentidos vinculados a existência, nesse mesmo bairro, de crianças que jogam futebol com amigos, de pessoas não ligadas ao tráfico, das dores que essas próprias pessoas têm, de seus sonhos e desejos, da possibilidade restrita de saída do bairro para uma vida mais tranqüila e melhor fora dele. 
O diretor Fernando Meirelles partiu da realidade em palavras presente no livro de Paulo Lins e não da realidade da experiência corporal naquele lugar – essa realidade experiencial subsidiou sim a escrita do Paulo Lins, que criou seu romance poetizando parcelas da vida vivida em Cidade de Deus, criando para esse bairro outras camadas de realidade.
É muito interessante acompanhar Paulo Lins no tratamento que dá aos lugares. Cidade de Deus é um personagem construído frase por frase no romance. Há nele muitas imagens e descrições dos lugares, além de tomar os elementos espaciais como participantes da narrativa. Logo na primeira página podemos sentir isso:
“Repousou o olhar no leito do rio, que se abria em circunferências por toda a sua extensão às gotas de chuva fina, e suas íris, num zoom de castanhos, lhe trouxeram flash-backs: o rio limpo, o goiabal, que, decepado, cedera lugar aos novos blocos de apartamentos; algumas praças, agora tomadas por casas, os pés de Jamelão assassinados, assim como a figueira mal-assombrada e as mamoneiras; o casarão abandonado que tinha piscina e os campos do Paúra e Baluarte – onde jogara futebol defendendo o dente-de-leite do Oberom – deram lugar às fábricas.” (2002, p.11)
Vejam o rio que projeta imagens no personagem, tanto de si mesmo quanto do mundo. Mais a frente, o personagem Cidade de Deus se manifesta por inteiro:
“Cidade de Deus deu a sua voz para as assombrações dos casarões abandonados, escasseou a fauna e a flora, remapeou Portugal Pequeno e renomeou o charco: Lá em Cima, Lá na Frente, Lá Embaixo, Lá do Outro Lado do Rio e Os Apês.
Ainda hoje, o céu azula e estrelece o mundo, as matas enverdecem a terra, as nuvens clareiam as vistas e o homem inova avermelhando o rio. Aqui agora uma favela, a neofavela de cimento, armada de becos-bocas, sinistros-silêncios, com gritos-desesperos no correr das vielas e na indecisão das encruzilhadas”. (idem, p.16)

No filme, as alusões a realidades pré-existentes na expressão Cidade de Deus situam-se na tensão entre o bairro carioca e esse mesmo bairro escrito por Paulo Lins. Tensão entre ser fiel ao livro ou se apoiar mais na proposta de mostrar a “realidade brasileira”. Fernando Meirelles, no texto introdutório ao roteiro, escreve que uma das primeiras decisões que tomaram foi a de que “seríamos fiéis ao espírito do livro, mas não necessariamente à estrutura ou aos acontecimentos” nele escritos (2003, p.10).

As alusões à realidade continuam na opção de utilizar não-atores para protagonizarem os personagens. Moradores de bairros pobres do Rio de Janeiro foram selecionados, foi-lhes dado todo um “tratamento especial” e com eles se estabeleceu uma grande confiança. No texto introdutório ao roteiro, Fernando Meirelles escreveu: 
“Mas foram dos atores que vieram as contribuições que acabaram dando o tom quase documental ao filme”. (idem, p.12)
“...reações ou piadas eram incorporadas e intenções afinadas” (ibidem, p.13)
a partir das idéias e falas dos atores nas oficinas e ensaios.
Nos gestos, cores, faces e movimentos trazidos nos corpos das pessoas selecionadas para serem personagens no filme, vieram impregnadas diversas camadas das realidades onde eles vivem: favelas e bairros pobres. Sobre essas camadas foram sendo acrescidas outras, nas falas refeitas do roteiro, nas rezas incluídas nas seqüências: palavras e expressões circunscritas aos bairros e favelas de onde eles vieram. Tudo a dar maior sensação de veracidade, de vínculo com essa realidade de onde saíram essas pessoas que ali encarnam personagens. Esta sensação de realidade é o tom quase documental que o filme tem.
Pela presença física e sonora de atores oriundos das favelas e bairros pobres, os diretores do filme criam permeabilidade para que a “realidade brasileira”, em sua face de miséria, chegue com mais força e espontaneidade às telas. Daí, talvez, estar nas contribuições dos atores o tom documental e não nas intenções iniciais e explicitadas do diretor e produtores.
No entanto, estas alusões à realidade se radicalizam por terem as cenas dos tempos mais atuais sido locadas no próprio bairro carioca de Cidade de Deus, revelando a paisagem do local aludido no título do filme. É interessante lermos o que escreve Fernando Meirelles sobre os tempos que passou nesse bairro fazendo as filmagens:
“No final do processo fiz uma constatação paradoxal, que pode parecer forçada, mas é a pura verdade: a favela é um lugar violento e pobre, e esta desigualdade social deve ser combatida sem trégua; mas, assim como o filme, a favela é, ao mesmo tempo, um lugar muito divertido. As pessoas nas favelas sabem como passar o dia. (...) Esse aprendizado foi a experiência mais transformadora que esse filme me ensinou. Paradoxal: fiz um filme para falar sobre a pobreza e a violência e acabei aprendendo muito sobre felicidade”. (2003, p.13)
Lembrando do primeiro parênteses que fiz nesse ensaio, a experiência no/do lugar geográfico não ficou tão clara nas telas, onde a felicidade apresentada normalmente estava fora dele: na praia, na editora do jornal, nos tempos idos da implantação do bairro. O tom dado ao bairro Cidade de Deus ficou entre a pobreza e a violência. A felicidade passou quase ao largo do lugar fílmico apresentado no filme: entrou no baile, no churrasco/festa inicial. Os dois momentos de felicidade terminaram em carnificina...
A experiência do diretor o ajudou a dissolver a realidade de violência e pobreza do bairro para si mesmo. Em meu entender, no entanto, seu filme ajudou a construir e reforçar essa realidade violenta e pobre para aqueles que o assistiram, dando-nos mais e mais imagens e sons e memórias para assim pensar e sentir Cidade de Deus.

Segundo parêntese
Gostaria de dizer que a opção de locar as cenas no próprio lugar que está no centro da narrativa fílmica é uma opção estética e política e nem um pouco natural, em se tratando de produção cinematográfica. Lembro que a maioria dos filmes que aludem a um determinado território ou lugar geográfico existente para além das telas é filmado fora dele. Apenas como exemplo cito os tantos filmes sobre o Vietnã filmados em cenários semelhantes em termos de natureza localizados em outros países do Sudeste Asiático, ou os westerns americanos filmados no deserto espanhol, ou ainda os infinitos cenários montados em estúdios, portanto descolados do cenário geográfico “real” aludido no filme. 
Sobre esse baralhamento de diversos locais, sobrepondo-os uns aos outros, creio que é mais um dos recursos da linguagem do cinema para construir suas narrativas dentro das possibilidades políticas, financeiras e estéticas. Acrescento que isso muitas vezes pode inclusive ampliar os sentidos dos próprios lugares baralhados e sobrepostos . 

Retornando...
Como mais uma alusão à realidade existente no filme gostaria de destacar que foram utilizadas imagens de tevê da época histórica que estava sendo retratada, tanto de personagens (Mané Galinha) quanto de locais (os Apês). Imagens em preto e branco, com nítidas características de emissão televisiva são apresentadas ao espectador no momento da prisão de Mané Galinha. Notemos a deliberada opção do diretor do filme: enquanto são utilizadas imagens do âncora do Jornal Nacional nos finais dos anos 70, Sérgio Chapelin, ainda jovem, está-se a indicar que estas são “imagens reais”, provenientes da época a que se refere esse momento do filme, o final dos anos 70. Quando são colocadas, na seqüência destas, imagens de Mane Galinha dando entrevista elas mantêm características estéticas semelhantes às de Chapelin: transmissão televisiva em branco e preto. O que vemos, no entanto, é o ator do filme falando e não o Mané Galinha dos anos 70. Esta alusão à realidade além cinema é feita e apontada no próprio filme com a presença, numa mesma sequência fílmica, de personagens históricos – Sérgio Chapelin – e personagens fílmicos – o ator Seu Jorge como Mané Galinha. O Mané Galinha histórico só irá ser mostrado na sequência de imagens que aparecem após o final da narrativa fílmica. 
A sutileza com que essa alusão à realidade além-filme é feita, basicamente com a montagem em seqüência de cenas com características estéticas semelhantes, realiza uma mistura mais intensa entre as diversas camadas de realidade que penetram esse filme.
Como última alusão à realidade cito aquela que ao meu ver é a mais geográfica delas: o aparecimento, por poucos segundos, de fotografias aéreas verticais, na tela e nas mãos dos personagens. Não que estas fotos aéreas sejam a geografia do lugar, mas são elas que remetem o espectador à realidade além-cinema, ao lugar geográfico existente na cidade do Rio de Janeiro, um lugar passível de ser fotografado e mapeado. 
Mais que isso, o contexto narrativo de aparição das fotos aéreas é o de tomada de poder por Zé Pequeno de todas as bocas do bairro. As fotos aéreas explicitam que a cada uma delas corresponde uma extensão territorial passível de ser demarcada no chão do bairro e conhecida dos que ali vivem, o que fica claro ao espectador pelas áreas marcadas sobre as fotos aéreas e referenciadas pelos personagens como sendo os territórios de cada uma das bocas existentes em Cidade de Deus. 
As cenas de matança que antecedem à aparição das fotos aéreas são filmadas de cima pra baixo, em ângulo de 90 graus em relação à superfície, numa homologia ao ponto de vista presente nestes fotos aéreas verticais que aparecerão ao final da seqüência. Dessa forma, ao manter o mesmo ponto de vista de 90 graus, o diretor insere as cenas no interior das fotos aéreas, como se a câmera tivesse feito um zoom em cada um dos pontos desse território em que a conquista se dava mais efetivamente, mantendo, no entanto, o mesmo lugar de observação: o da “neutralidade” de quem observa de fora, de cima, ao longe, aquele que apenas observa os fatos. 
O aparecimento das fotos aéreas verticais também aponta o quanto elas são instrumentos de estratégia e dominação, indicando uma prática espacial existente em certos grupos sociais. Nesta seqüência, fica nítido que é apoiado nelas que a gangue de Zé Pequeno vai planejando suas ações e tomando posse de cada uma das bocas, exceto a do Cenoura. Este, por histórica ligação afetiva com Benê, tem sua boca poupada na investida vencedora de Zé Pequeno.
Mais à frente no filme, essa dimensão territorial das bocas aparecerá novamente, quando – aliado à morte de Benê – um pretexto espacial, a crítica aos pequenos assaltos acontecidos na “área” do outro, será um dos motivos detonadores da guerra entre os dois bandos de traficantes.

Outras alusões ao lugar além-cinema puderam ser vistas e ouvidas em cartazes e entrevistas ao diretor e aos produtores, criando um “clima” favorável para que nossas memórias acerca desse lugar geográfico carioca fossem sugadas para dentro das imagens e sons fílmicos.

DESFAZENDO-SE DA REALIDADE: ESTETIZAÇÃO E DIDATIZAÇÃO

Creio, no entanto, que o diretor Fernando Meirelles fez um trabalho muito interessante de desmonte do real visual, buscando apresentar o lugar Cidade de Deus como um local criado para e na narrativa fílmica. Ele realizou este intento ao estetizar e didatizar explicitamente os cenários e as épocas que estruturam a narrativa.
Com isto o filme, ao meu ver, fez diferente do que Paulo Lins escreve no início de seu livro: “Os personagens e situações desta obra são reais apenas no universo da ficção; não se referem a pessoas e fatos concretos e sobre eles não emitem opinião” (2002, p.6). Notemos que ele se refere apenas aos personagens humanos, não ao lugar, principal personagem de seu livro, personagem-título que tem sua imagem criada e adensada ao longo de suas 400 páginas. Um lugar que vai ganhando imagens e tornando-se ainda mais memorável pelas poéticas linhas e frases do autor. Nas entrelinhas da ressalva feita por Paulo Lins está a idéia de que o lugar Cidade de Deus que ali se apresenta é real, apesar dos personagens não o serem?
Quanto ao filme Cidade de Deus, disse acima que o diretor apresentou o lugar como local fílmico que compõem uma narrativa fílmica justamente porque nele também o bairro Cidade de Deus é tomado como real apenas no universo da ficção. 
Apoio essa minha posição primeiramente porque o espaço é desnaturalizado em termos de experiências espaciais para além cinema – por exemplo, praticamente não há cenas e seqüências em tempo real, algo que ele poderia ter se utilizado bastante uma vez que sua narrativa estava colada em muitas outras feitas sobre o lugar Cidade de Deus –, sendo, ao mesmo tempo, estetizado em sintonia com os objetivos da narrativa, amparando-se, para isto, nas experiências cinematográficas e televisivas provenientes de cada uma das épocas históricas aludidas: cada época fílmica é retratada em cores e ritmos semelhantes aos produtos audiovisuais que nela foram produzidos historicamente. Digo cada época porque foi essa divisão da narrativa em três épocas que levou à opção estética de caracterização do local Cidade de Deus de três maneiras tão distintas. No texto introdutório ao roteiro, lê-se:
“Nossas primeiras decisões: seríamos sempre fiéis ao espírito do livro, mas não necessariamente à sua estrutura ou aos acontecimentos. A segunda decisão: dividir a história em três épocas distintas, começando nos anos 60 e indo até os 80. Isso daria uma certa cara de saga e deixaria o filme mais didático, mostrando o desenvolvimento do tráfico no Rio de Janeiro”. (2003, p.10-1)
No cinema, espaço e tempo imbricam-se de maneira mais radical e explícita que no “mundo real”, fazendo com que, num filme como Cidade de Deus, onde o espaço é tema central, eles se construam mutuamente, no mais das vezes sendo indistintos e inseparáveis. 
No roteiro, estão explicitadas as “caracterizações estéticas” de cada época fílmica, que são, em grande medida, cenários e movimentos espaciais, dos lugares filmados para se tornarem espaço fílmico.
Os Anos 60 são caracterizados em ”uma cinematografia clássica”, escreve Fernando Meirelles:
“A Cidade de Deus é apresentada em planos gerais com suas casas organizadas, sempre em perspectiva e com horizonte. A câmara permanece estática em tripés ou carrinhos. Os enquadramentos nunca fecham além do plano médio. A lente básica usada é uma 40 milímetros. Cenas diurnas, em exterior, predominam. O tom é quente e o contraste mais baixo. Figurino e direção de arte devem sempre seguir uma palheta de cor pastel, com muitas camisas e vestidos brancos. A moda é falseada indo mais pra trás no tempo, para que se reforce a diferença entre roupas feitas em casa e as roupas industrializadas que virão na fase seguinte. Proibido o uso de azul, de outros tons frios ou de cores intensas. Nem o céu pode ser azul. A decupagem respeita as regras de montagem como continuidade e eixo. Os atores improvisam os diálogos, mas respeitam as marcas para a movimentação. Rodamos as cenas por partes. No roteiro, os bandidos são mais românticos, mais inocentes e menos cruéis, não vemos ninguém matar ninguém. A trilha original tem percussão e ritmos brasileiros misturada a sambas clássicos da época.” (idem, p.20)
Percebe-se um cuidado geral nesta caracterização, desde os enquadramentos e o figurino até o “tipo de bandido” e a trilha sonora, passando pelas cores de roupas e cenários: “nem o céu pode ser azul”. Note-se que essa época não é caracterizada em sintonia somente com a época histórica retratada, os anos 60, mas principalmente em sintonia com as idéias de saga e de didatismo pretendidas no desenvolvimento da narrativa fílmica. Por isto, era importante para a narrativa que fosse nesta primeira época que a trama principal – a oposição moral e de ações entre o bom moço Buscapé e o mau moleque Dadinho – se estabelecesse. Com a caracterização estética dos anos 40, a distinção entre as épocas ficou mais clara e didática, alcançando a proposta do diretor de produzir um contraste evidente entre ela e a próxima.
Os Anos 70 são “a fase feliz do filme”:
“Apresentamos os novos espaços da favela da Cidade de Deus com os ‘Apês’ e planos gerais – mas já há uma sensação de confinamento. Vielas sempre terminam em muros, não há grandes fugas ou perspectivas. Como em alguns filmes da década de 1970, usamos bastante câmera na mão e estão liberados o close-up e um espectro maior de lentes. Cores fortes e misturadas aparecem como num filme Ektacolor, bem ao gosto dos anos 70. Estampas nas roupas e grafismos nas paredes. A presença da propaganda e das marcas é introduzida. Os atores estão mais soltos em cena. Rodamos as seqüências inteiras apenas variando a posição da câmera. A trilha original mantém a percussão brasileira, mas é funkeada. Na trilha comprada, os clássicos dos bailes: Raul Seixas, Tim Maia, James Brown e alguns hits de rock.” (ibidem, p.68)
Nesta caracterização ficam mais evidentes as alusões feitas de maneira bastante diversificada à realidade além cinema, neste caso a realidade histórica brasileira da década de 1970. Apesar de serem “épocas fílmicas”, elas são caracterizadas com diversas alusões à época histórica correspondente, não só quanto aos acontecimentos, mas à cultura em geral que distinguiu esse período de outros ao longo da história: estilo de filmagem, cores, roupas, músicas. Nossas memórias dessa época – construídas nas experiências diretas ou em narrativas sobre ela – são trazidas ao filme de maneira mais intensa, contaminando as imagens e sons fílmicos e sendo contaminadas por eles.
O Final dos 70 é quando “a guerra se instala”:
“A Cidade de Deus não tem mais geografia, são apenas espaços caóticos, os personagens estão presos entre muros, como num enorme labirinto, não há mais perspectivas ou horizonte. A câmera está sempre na mão e no meio da ação tentando registrar tudo da melhor forma possível. Já não damos mais marcas aos atores, deixamos que se movimentem livremente e a cada nova tomada podem cair em diferentes posições, vamos incorporar a descontinuidade. Como num documentário, a câmera tem que se virar em função dos acontecimentos. Urgência. Todas as lentes estão liberadas, closes de bocas ou pedaços de pessoas e coisas são bem-vindos para reforçar a sensação de descontrole. Predomínio de seqüências noturnas. O filme fica quase monocromático, há muito cinza, preto e cores frias. Os figurinos perdem as estampas, o desenho e a alegria. As locações estão poluídas visualmente, há muito lixo, resto de cartazes, objetos largados no meio das ruas. A montagem não precisa respeitar nenhuma regra, deve ser rápida, intensa. A trilha composta mantém os instrumentos brasileiros mas apenas cria climas. Não há mais música”. (ibidem, p.186)
Na caracterização da época final do filme fica mais explícita a busca de criar sentido através das imagens: “a sensação é de descontrole”, escreve Fernando Meirelles. Neste caso, um sentido, uma sensação criada de labirinto, caos, descontinuidade, tristeza, poluição. Toda a caracterização se faz com recursos fílmicos para aludir ao descontrole proveniente da guerra entre os traficantes. Esse era o “clima” da última época fílmica, o “clima” vivido naquele local naquele tempo. É sob este “clima” que agem os personagens...
A estrutura didática fez com que cada época tivesse um “clima” específico e distinto das outras duas, dando pistas ao espectador que o filme não é a realidade, mas uma das muitas maneiras de contá-la e apresentá-la.
A própria montagem do filme não é assim tão cronológica, uma vez que é permeada por pequenas histórias que cruzam, muitas delas, os três tempos.
A mistura de tempos é tomada da estrutura do livro de Paulo Lins. O narrador também está num presente mais próximo que os outros tempos que narra. Talvez por isso, logo na “abertura” do filme para a “primeira época” o tom nostálgico e leve parece ter sido tomado do livro e encaixado naquele vórtice que se abre em torno de Busca-Pé. No primeiro momento em que o narrador de Paulo Lins narra os tempos passados, na página 15, lê-se:
“Antigamente a vida era outra aqui neste lugar onde o rio, dando areia, cobra-d’água inocente, e indo ao mar, dividia o campo em que os filhos de portugueses e da escravatura pisaram”.
Mas no livro as épocas se misturam de maneira mais freqüente, num percurso pela memória de Busca-Pé. Na mesma página o autor escreve, finalizando o “passeio pelo local”, centralizado no rio: “Ria o rio, mas Busca-Pé sabia que todo rio nasce para morrer um dia”. Chamo a atenção para o aspecto de fábula que tem essa frase, onde o rio permanece como ele próprio e alude a uma vida humana, dando personalidade a ele, tornando-o personagem atuante na vida dos personagens humanos, fazendo, também com que todos os tempos se dobrem sobre o momento da narrativa que está sendo contada. O presente de quem conta sendo o vórtice dos demais tempos vividos e o rio a imagem desencadeadora das lembranças.

LUGAR E LOCAL

Penso que Fernando Meirelles optou por filmar não o lugar, mas os “sentidos hegemônicos” que circularam por esse lugar. E o fez cinematograficamente, como foi exposto acima. No roteiro, o diretor escreve: “decidi dividir a história em três fases, dando a cada uma delas características distintas como se fossem três filmes” (2003, p.20).
Posso dizer, também, que são três locais distintos. A continuidade temporal entre eles é dada por rupturas cênicas e estéticas: vórtice do giro da câmera ligando os anos finais aos anos 60, passagem de um automóvel em primeiro plano trazendo um outro espaço como cenário de fundo. Poderíamos dizer que, seguindo Italo Calvino, um lugar sucede ao outro, permanecendo com o mesmo nome, mas não sendo o mesmo.
“Evitem dizer que algumas vezes cidades diferentes sucedem-se no mesmo solo e com o mesmo nome, nascem e morrem sem se conhecer, incomunicáveis entre si. Às vezes, os nomes dos habitantes permanecem iguais, e o sotaque das vozes, e até mesmo os traços dos rostos; mas os deuses que vivem com os nomes e nos solos foram embora sem avisar e em seus lugares acomodaram-se deuses estranhos. É inútil querer saber se estes são melhores do que os antigos, dado que não existe nenhuma relação entre eles, da mesma forma que os velhos cartões-postais não representam a Maurília do passado, mas uma outra cidade que por acaso também se chamava Maurília.(1990, p.30-1)
De certo modo, filmou-se essa descontinuidade destacada por Calvino. Por acaso, os três locais filmados chamavam Cidade de Deus. Poderíamos dizer que há uma “proposição teórica”, a da ruptura e da não comunicabilidade entre um tempo e outro vividos num mesmo ponto do território. Essa seria uma alusão a um certo sentido para a história, não só a do filme, mas aquela que se dá para além dele.
No entanto, essa apresentação das rupturas se faz paralela a uma outra apresentação que lida com as noções históricas de permanência e mudança e que são, digamos, os “trilhos” pelos quais somos encaminhados em nossa cultura atual quando assistimos ou contamos um acontecimento ou um processo que ocorreu ao longo do tempo. A maior parte dos filmes, Cidade de Deus aí incluído, lida com o eixo da mudança/transformação como elemento narrativo e explicativo, o que fica mais nítido na intenção didática apontada pelo diretor.
Essa apresentação do tempo como sendo um continuum que amarra as ações futuras em acontecimentos passados e presentes, está marcada na passagem entre os Anos 70 e o Final dos 70, onde as distinções estéticas são menos notáveis que as que distinguem essas duas épocas dos Anos 60. Entre estes e os Anos 70 a ruptura é nítida, ética e esteticamente.
Ao meu ver, a menor distinção entre os Anos 70 e o Final dos 70 se dá não só por uma opção de apresentá-los como uma continuidade no tempo, mas como uma continuidade no tempo dentro de um mesmo lugar, mas não fora dele. Assim, estas duas épocas fílmicas tornam-se menos nítidas por terem se imbricado numa distinção também dos locais no filme: as seqüências passadas fora do bairro são mais nitidamente distintas em suas cores e músicas, alegrias e descobertas, e principalmente loca(liza)ções – fumar na praia nos Anos 70, assaltar ônibus e banco no Final dos 70. No entanto, essa distinção não acontece nas sequências passadas no interior de Cidade de Deus, que vão tornando-se escuras e tensas já nos Anos 70; desejos de poder e violência vão tomando a frente das câmeras, exibindo armas, tiros e risos sarcásticos, misturados com paqueras, desejos consumistas e festas.
Quando o filme entra em sua terceira época, praticamente desaparecem as seqüências fora do bairro e as seqüências das ações realizadas na própria Cidade de Deus se tornam mais ágeis, mas com uma iluminação e cores não tão distintas da época anterior. É como se vamos sendo aos poucos conduzidos a entrar no desenlace da narrativa, como se essa condução fosse feita pela “mão natural” da passagem dos dias, meses e anos, como se a cronologia fosse a única maneira de vivenciarmos o tempo.

Terceiro parêntese
Há uma daquelas pequenas histórias inseridas pelo narrador Busca-Pé que ilustra bem a radicalização – de certa forma já naturalizada em nossa cultura audiovisual – da noção de mudança/transformação como eixo narrativo de um local. Falo d“A história da boca dos Apês”, em que o fundo de cena – o interior de um apartamento – é sempre o mesmo e vai mudando ao sabor das ações e personagens que vão entrando, ficando e saindo dele. A montagem é feita de fusões sutis que dão um ar de naturalismo ao tempo que passa. Nessa seqüência rápida, está presente uma noção de conhecimento hegemônica em nossa época ainda permeada da idéia de progresso e centrada na dimensão temporal como sendo a única que efetivamente atua no entendimento da vida e das práticas sociais. A dimensão espacial não atua em nada, ela é passiva, maleável e moldável às vontades e ações humanas providas cada vez mais de técnicas e instrumentos.
Cabe dizer, no entanto, que o filme, tomado em sua inteireza, aponta exatamente no sentido oposto, uma vez que faz notar o quanto a organização espacial do bairro – distribuição das casas e ruas, ausência ou presença de muros e cercas, adensamentos diversos (pessoas, casas, movimentos...), dimensão e forma das ruas e becos, descidas, subidas, planos... – atua nas práticas sociais que nele são desenvolvidas. Creio que dessa forma esse filme nos dá aquela consciência a que Pasolini se refere: a de que a realidade é uma linguagem a nos dizer do mundo e da vida. Da mesma maneira, Cidade de Deus também nos dá indícios para adentrar às idéias de James Hillman (1993) de que a cidade tem alma, de que seus objetos, formas e cenários nos mobilizam, nos animam, nos atiram entendimentos diversos, participando efetivamente da nossa constituição como sujeitos e subjetividades.

Retornando...
Nessas intensas e tensas permeabilidades entre realidade e cinema, termino indicando a minha posição em relação ao espaço que aparece e no qual circulamos durante uma projeção: 
“Um filme nos propõe o momento da criação de um outro mundo, onde estão se organizando, como pela primeira vez, espaço, tempo e homens. O filme nos oferece uma narrativa fundadora. A cada filme produzido um mundo é fundado.” (Oliveira Jr, 2001, p.2)
porque
“um filme não termina. Também não começa. Ele dura. É como a chuva. Passa. Escorre. Penetra e fecunda. Carrega e destrói. É múltiplo e único. Quando termina é que se tem de novo a “consciência clara”. Durante o filme vivemos a opacidade e a fluidez. Enquanto chove olhamos pela janela os contornos moventes do mundo. Se nos permitimos molhar são nossos contornos que se moverão. Devemos nos permitir ao filme. Entregarmos nosso ser ao outro personagem que brilha diante de nós. (idem, p.1)
O personagem maior do filme Cidade de Deus é um lugar homônimo, espaço geográfico e fílmico ao mesmo tempo, imbricados pelas lentes das câmeras e pelas memórias de cada um de nós. A ele nos entregamos como espectadores. Nele circulamos durante a projeção. Ao final do filme, um outro lugar existe em nós.
Só assim, entregando-nos, creio podermos receber das imagens e sons fílmicos aquilo que nos está sendo atirado pelos deuses nos entremeios das imagens e cortes... A realidade que está diante de nós não deve ser literalizada enquanto realidade de além cinema, mas permanecer enquanto tal ao mesmo tempo em que vai tornando-se literatura, ficção, narrativa, memória. 
Tomar as alusões realizadas no filme como permanência das materialidades e conhecimentos além cinema, mas também fazer destas alusões passagens para outros sentidos que essas mesmas materialidades e conhecimentos ganham ao se contaminarem das imagens e sons que o filme lhes traz. Deixar que nossos “territórios interiores” sejam dobrados sobre os “territórios exteriores” apresentados na tela e vice-versa, tornando-os, para continuar na metáfora acima citada, fecundados mutuamente pela chuva que lhes caiu na superfície...
Para que isto ocorra com maior freqüência em cada um de nós, sugiro fazer da experiência de ir ao cinema um momento de pouca atividade e muito padecimento, de modo que algo nos aconteça, nos chegue , ao invés de somente nós levarmos algo para as imagens e sons do filme. Tomemos para o cinema e seus filmes a dica da escritora brasileira Clarice Lispector para seus leitores: 

“Então escrever é o modo de quem tem a palavra como isca: a palavra pescando o que não é palavra. Quando essa não palavra morde a isca, alguma coisa se escreveu. Uma vez que se pescou a entrelinha, podia-se com alívio jogar a palavra fora. Mas aí cessa a analogia: a não palavra, ao morder a isca, incorporou-a. O que salva então é ler distraidamente.” (1992, p.34)

Espero que, ao assistirmos filmes, consigamos ler as entrelinhas junto com as imagens que as incorporaram: ver e ouvir distraidamente, para que não nos cheguem apenas os sentidos remetidos aos lugares e espaços cuja realidade se dá para além do filme. Seria interessante que estes lugares e espaços também fossem tomados como criados e existentes no filme e só então se dobrariam sobre estes outros lugares e espaços criados e existentes para além cinema e que, muitas vezes, como no caso de Cidade de Deus, têm o mesmo nome.



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