terça-feira, 20 de setembro de 2011

Considerações Filme-debate "Quando a maré encher"

As cidades são como caixas de Pandoras, tal como já caracterizou Bauman[1]. Aglomerados complexos, heterogêneos, em constantes metamorfoses, compreender as dinâmicas destes espaços requer que escapemos de concepções pré-estabelecidas, das imagens do senso comum, desenvolvendo um “olhar morfológico”, um olhar que procura observar o visível, registrar todos os detalhes, questionar, confirmar e apontar novos fatos, objetos e sentidos da paisagem (SAUER, 2000).
Depreende-se assim, que um debate sobre a cidade do Recife, cidade plural em paisagens e identidades, deve prescindir da consideração desta variabilidade da cena urbana. Cidade difícil de se compreender num primeiro momento, o Recife exige grande esforço na compreensão de sua dinâmica.
O filme-debate desenvolvido a partir da exibição do documentário "Quando a maré encher" (2006, 31’) do diretor Oscar Malta demonstrou a complexidade da cidade do Recife, na medida que demonstrou o cotidiano social dos pescadores urbanos da cidade, mostrando a criatividade necessária de quem depende da relação com o mar, dos pescadores que navegam à procura do seu sustento, dos que sabem ter a paciência para, a cada manhã, ter seu dia definido pela maré.
Algumas temas balizaram o debate, como a influência da maré na vida das pessoas, onde as forças da natureza são encaradas quase como uma divindade, uma miotologia, que decide a vida da população mas também fornece o sustento de vida aos habitantes da Ilha de Deus. Esta relação bastante íntima entre os espaços líquidos observados e seus habitantes, acabou por evidenciar a “identidade da maré” que esses moradores da Ilha de Deus apresentam. A partir da prática da pesca, passada como uma atividade de família através das gerações, alguns personagens do filme tornam evidente como a relação entre estes espaços e seus habitantes é permeiada por laços identitários, transparecendo-se, por exemplo, na fala de Garotinho, habitante da comunidade, e que arremata em depoimento que “a realidade da comunidade é o sururu, o caranguejo”.
Esta percepção acerca da “identidade da maré” indicou alguns apontamentos que aproximaram o debate acerca das representações retóricas sobre a relação estabelecida entre a cidade do Recife e os indíviduos das classes abastadas, habitantes dos ambientes mais frágeis do espaço urbano da capital pernambucana, os manguezais. A saber, os discursos acerca dos “homens caranguejos” de Josué de Castro, do “homem-gabirú”, de Daniel Aamot e os “Caranguejos com cérebro”, do movimento musical Mangue Beat.
Em comum, estas representações da cidade, assim como o filme de Oscar Malta revelam as estreitas relações e a criação de identidades que se desenvolvem entre os recifenses e as águas da cidade, mas revelam igualmente, uma visão crítica a específicas questões sociais do Recife, possibilitando um debate acerca das desigualdades sociais da cidade do Recife, assim como a insustentabilidade e precarização a que alguns indivíduos sobrevivem na metrópole pernambucana.
Podemos assim pensar, a partir desta relação sociedade-mangues, que estes espaços pantanosos adquirem duas idéias nos imaginários urbanos da cidade: a existência daquele mangue diabólico, que engole a vida das pessoas, habitado por mares de miséria, por habitantes que em tudo mimetizam os caranguejos, entregues ao poder maligno da maresia; a percepção de um mangue divino, que a tudo criou na cidade do Recife.
O vídeo também mostra o drama ecológico dos rios da capital pernambucana, entregue a uma sucessiva carga de aterros, de poluição fluvial e canalizações crescente, de destruição das zonas de mangues, assim como a agressões mais recentes de cunho especulativo, onde observa-se uma crescente expansão mobiliária via Le Parc, Shopping Rio-Mar, as Torres Gêmeas da Moura Dubeaux, a Via Mangue…
Este crescente processo de gentrificação observada nas margens dos rios da cidade, revelam uma densa dinâmica que tem se observado no Recife: a exiguidade do terreno da cidade, somada à revalorização paisagística dos ambientes líquidos da “cidade estuário”, assim como a associação entre o poder público com o privado tem evidenciado como a renovação urbana da cidade tem sido calcada pela valorização dos usos econômicos dos espaços urbano da cidade, seja estes usos pela verticalização das margens risonhas do Capibaribe pelas grandes empresas de engenharia, seja pelo estímulo ao comércio paisagístico de um Recife apropriado pelos discursos do city marketing.
No mais, pensando que este debate não acaba com o fim da sessão, sugerimos abaixo, alguns textos que podem introduzir novas questões sobre as problemáticas urbanas observadas nesta segunda sessão do cineclube LECgeo. Desde já agradecemos a todos presentes que contribuiram com este rico debate.

SUGESTÕES BIBLIOGRÁFICAS
AAMOT, Daniel et al. Homem Gabiru: Catalogação de uma espécie. 1º edição, São Paulo: Hucitec, 1992.
BITOUN, Jan. Centro Histórico e Identidade Territorial. In: SARINHO, B.; BORGES, W. (Orgs.). Memória do Seminário Recife, Cidadania e Revitalização. Recife: Inojosa Editores, 1993, p. 49-58.
___________. Recife, uma interpretação geográfica. In: CARLOS, A.F.A. (Org.). Os Caminhos da Reflexão sobre a Cidade e o Urbano. São Paulo: EdUSP, 1994, p. 27-45.
___________. Territórios do diálogo: Palavras da cidade e desafios da gestão participativa no Recife (Brasil). Revista de Geografia. Recife: UFPE/DCG, v. 16, n. 2, jul/dez, 2000, p. 41-54.
____________. Impactos Socioambientais e Desigualdade Social: vivências diferenciadas frente à mediocridade das condições de infra-estrutura da cidade brasileira: o exemplo do Recife. In: MENDONÇA, Francisco (org.). Impactos Socioambientais Urbanos. Curitiba: Ed. Da UFPR, 2004, p. 255-269.
CASTRO, Josué de. Ensaios de Geografia Humana. 4º ed. São Paulo: Brasiliense, 1966, p. 153-226.
______________. Homens e Caranguejos. 4º ed. Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 2010.
MACIEL, Caio Augusto Amorim. Espaços Públicos e Geo-símbolismos na “Cidade-estuário”. In: Revista de Geografia da UFPE. Recife: UFPE/DCG-NAPA, vol.22, nº1, JAN/JUL, 2005, p. 10-18.
MORAES, Demóstenes; MIRANDA, Lívia. “O Direito a Cidade e a Regula(riza)cão de Assentamentos Precários no Recife”. In: Cadernos Observatório PE – Políticas Públicas e Gestão Local na Região Metropolitana do Recife. Recife: 2007, p. 74- 81.
NETA, Maria Amélia Vilanova. Geografia e Literatura: decifrando a paisagem dos mocambos do Recife. Dissertação de Mestrado em Geografia. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2005.
RECIFE, Prefeitura. Atlas do Desenvolvimento Humano no Recife. 2005. Disponível em: <http://www.recife.pe.gov.br/pr/secplanejamento/pnud2006/downloads.html>.



[1] BAUMAN, Zygmunt. Confiança e medo na cidade. Rio de Janeiro: Editora Zahar, 2009.

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